sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Adoção por casais homoafetivos.

A nova família e suas possibilidades jurídicas


Elaborado em 07/2011.

A construção do caráter do adotado está mais envolvida com a educação moral, o que torna o aspecto da orientação sexual dos membros familiares irrelevante neste contexto. 

RESUMO: Este artigo enfoca a questão da adoção por casais homoafetivos em suas diversas nuances e repercussões sociais, transpondo a barreira do preconceito, expondo a forma de visualização da família como núcleo de afetividade e destacando a importância e os benefícios da adoção, ao mostrar que a construção do caráter do adotado está mais envolvida com a educação moral, o que torna o aspecto da orientação sexual dos membros familiares irrelevante neste contexto. Há a análise de um caso concreto do Direito Brasileiro, através da visão dos autores Roberto Lyra Filho – e sua Teoria Dialética do Direito – e Luís Alberto Warat – com sua concepção de Pluralismo Jurídico.


PALAVRAS-CHAVE: Adoção. Afetividade. Família. Homoafetividade.


ABSTRACT: This article focuses on the issue of adoption by homosexual couples in its various nuances and social impact, crossing the barrier of prejudice, exposing the way of viewing the family as the nucleus of affection and highlighting the importance and benefits of adoption, by showing that the construction character of the adoptee is more concerned with moral education, which makes the appearance of family members' sexual orientation irrelevant in this context. There is a case analysis of the Brazilian law, through the vision of the authors Roberto Lyra Filho - and his dialectical theory of law - and Luis Alberto Warat - with his conception of legal pluralism.

KEYWORDS: Adoption. Affectivity. Family. Homosexuality.



1 – INTRODUÇÃO

O tema abordado é algo ainda muito novo para o Direito. A sociedade não se encontra preparada para aceitar a adoção homoafetiva, nem para se posicionar em relação ao tema, pois tudo que é inovador acaba sendo visto com certo temor. Mas a humanidade vem avançando rapidamente, muitas transformações estão ocorrendo e, por ser um fenômeno social, a adoção por casais homoafetivos tem grande relevância para o Direito. O Direito nasce dos fatos sociais, das relações travadas entre os seres humanos. Assim, com lei ou sem norma, os fatos acabam por se impor perante o Direito, e este tem que se adaptar àqueles.


Negar a adoção a uma pessoa pelo simples fato de ela ser considerada diferente dos padrões gerais estabelecidos pela sociedade é um ato de discriminação. A Constituição Federal Brasileira proíbe tal ato e elenca, em seu artigo 3º, objetivos fundamentais como a construção de uma sociedade mais justa e solidária, bem como a promoção do bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Por outro lado, deferir um pedido de adoção a um casal homossexual é um grande ato de responsabilidade, uma vez que é dada total confiança de que o casal manterá um comportamento respeitável no lar, protegendo a criança dos sofrimentos e humilhações que ela provavelmente passará por conviver com algo diferente dentro do seu lar. Em ambos os casos, é preciso pesar e ver se há a real vantagem para o adotado, pois, como define o artigo 1.625 do CC/02, a adoção só será admitida quando constituir efetivo benefício ao adotado, e isso deverá ser analisado caso a caso, levando em consideração principalmente os fatores psicológicos tanto dos adotantes quanto do adotado. Assim, a adoção deve ser vista como um ato de amor e o que deve prevalecer é a felicidade e o bem estar do adotado.

Baseando-se nessas considerações, este artigo terá como objetivo a análise de um caso concreto que envolve um casal homoafetivo feminino em uma relação de adoção. Primeiramente, será exposto detalhes do processo. Em seguida, analisar-se-á pontos relevantes da decisão segundo os autores Roberto Lyra Filho e Luís Alberto Warat. Por último, será destacada a mudança atual da concepção de família, dando maior importância à ao vínculo afetivo do que à consaguinidade.


2 - A BUSCA, FRENTE AO JUDICIÁRIO, DO DIREITO DE ADOÇÃO POR UM CASAL HOMOAFETIVO


São cada vez mais recorrentes processos judiciais que envolvem a solicitação por casais homoafetivos com o propósito de adotarem crianças. Podemos encontrar casos em diversos Estados brasileiros, que são beneficiados atualmente com o reconhecimento da união homoafetiva, mas que há alguns anos se deparavam com obstáculos maiores.

Um caso que merece destaque aconteceu no Rio Grande do Sul e se refere a uma mulher que entrou na justiça requerendo a adoção de duas crianças, que já estavam adotadas por sua companheira, com quem tem uma união estável desde 1998. Ela solicitou, frente ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o compartilhamento da adoção dos menores que, desde bebês, são criados pela sua parceira com sua participação, visto que ela ajuda no sustento, na criação e educação deles, além de ter condições financeiras e sociais melhores que sua companheira, o que privilegiaria as crianças com alguns benefícios, como, por exemplo, plano de saúde e pensão, no caso de separação ou falecimento.

De forma a entender melhor tal situação, segue uma pequena síntese do caso:

L. de 39 anos e Lu. de 31 anos convivem desde 1998. Em abril de 2003 Lu teve a adoção de P.H. deferida e, em fevereiro de 2004, foi deferida a adoção de J.V. Na época L. participou da decisão e de todo o processo de adoção, auxiliando nos cuidados e manutenção das crianças. Elas relatam que procuram ser discretas quanto ao seu relacionamento afetivo, na presença das crianças. Participam igualmente nos cuidados e educação dos meninos, porém é L. que se envolve mais no deslocamento deles, quando depende de carro, pois é ela quem dirige. L. diz que é mais metódica e rígida do que Lu e observou-se que é mais atenta na imposição de limites.
Segundo a Sra. I., mãe de L., a família aceita e apoia sua orientação sexual, "ela é uma filha que nunca deu problemas para a família, acho que as crianças tiveram sorte, pois têm atenção, carinho e tudo o que necessitam, L. os trata como filhos". Coloca que L. e Lu se relacionam bem. Observou-se fotos dos meninos e de L. na casa dos pais dela, eles costuma visitá-la aos finais de semana, quando almoçam todos juntos e convivem mais com as crianças e Lu (...) Os meninos chamam L. e Lu de mãe.

P.H. está com 2 anos e 6 meses (...). A professora dele, L.B.F, informou que o menino apresenta comportamento normal para sua faixa etária, se relaciona bem e adaptou-se rapidamente. L. e Lu estão como responsáveis na escola e participam juntas nos eventos na escolinha, sendo bem aceitas pelos demais pais dos alunos.

Observou-se que P.H. é uma criança com aparência saudável, alegre e ativo. J.V. faz tratamento constante para bronquite e, apesar dos problemas de saúde iniciais, apresenta aparência saudável e desenvolvimento normal para sua faixa etária. Durante a tarde, ele fica sob os cuidados da mãe de Lu enquanto Lu e L. trabalham. A Sra. N. coloca que os meninos são muito afetivos com as mães e vice-versa. Lu coloca que, até agora, não sentiu nenhuma discriminação aos filhos (...).

L. coloca que sempre pensou em adotar, o que se acentuou com a convivência com Lu e as crianças, pois se preocupa com o futuro dos meninos, já que Lu. é autônoma e possui problemas de saúde. E ela já possui uma situação mais estável, trabalha com vínculo empregatício como professora da Urcamp, possuindo convênios de saúde e vantagens para o acesso dos meninos ao ensino básico e superior. Coloca: "a minha preocupação não é criar polêmica, mas resguardá-los para o futuro".

L. relata que, quando não está trabalhando, se dedica ao cuidado às crianças. Se refere à personalidade de cada um, demonstrando os vínculos e convivência intensa que possui com os meninos. Diz que costumam limitar a vida social às condições de saúde das crianças, principalmente J.V.. (BRASIL. Superior Tribunal Federal, Recurso Especial Nº 889.852 - RS (2006/0209137-4), fls. 13-17).

2.1 - O DESENROLAR NO JUDICIÁRIO


O pedido em questão foi negado em primeira e segunda instância. Mas, na instância seguinte, o tribunal gaúcho, de forma unânime, reconheceu a entidade familiar composta por pessoas do mesmo sexo e a possibilidade de adoção para constituir família. A decisão apontou, ainda, que estudos não indicam qualquer impedimento às crianças serem adotadas por casais homossexuais, sendo mais importante a qualidade do vínculo e do afeto no meio familiar em que serão inseridas.

Contudo, o Ministério Público do Rio Grande do Sul, discordando de tal proferimento, recorreu da decisão, levando ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) um requerimento para impedir esse consentimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que permitiu a adoção dessas crianças por uma das mulheres, na forma do Recurso Especial Nº 889.852 - RS (2006/0209137-4), fundado nas alíneas "a" e "c" do permissivo constitucional. Esse órgão alega contrariedade aos artigos 1.622 e 1.723 do Código Civil de 2002, 1º da Lei 9.278/96 e 4º da Lei deIntrodução ao Código Civil, além de discórdia pretoriana. Solicita, ainda, o provimento do recurso, "para o fim de definir a união homossexual apenas como sociedade de fato e, consectariamente, fazer incidir o artigo 1.622 do Código Civil, vedando a adoção conjunta dos menores pleiteada".

2.2 - O STJ E SEU POSICIONAMENTO SOBRE O FATO


Ao analisar esse recurso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), proferiu sua decisão, através de sua Quarta Turma, que por unanimidade, rejeitou o recurso do Ministério Público do Rio Grande do Sul, mantendo a decisão, a qual permitiu a adoção de duas crianças pelo casal de mulheres.

O ministro relator do proferimento, Luís Felipe Salomão, traz diversos pontos que levaram os ministros a tal decisão, que merecem análise mais detalhada, a qual será feita a seguir.

O ponto que o relatório cita que "Em um mundo pós-moderno de velocidade instantânea da informação, sem fronteiras ou barreiras, sobretudo as culturais e as relativas aos costumes, onde a sociedade transforma-se velozmente, a interpretação da lei deve levar em conta, sempre que possível, os postulados maiores do direito universal.", juntamente com o outro ponto "O Judiciário não pode fechar os olhos para a realidade fenomênica. Vale dizer, no plano da "realidade", são ambas, a requerente e sua companheira, responsáveis pela criação e educação dos dois infantes, de modo que a elas, solidariamente, compete à responsabilidade.", nos mostram que os ministros, na hora de analisarem o caso, estão desenvolvendo uma hermenêutica que não considera apenas o direito legal, mas também, a realidade.

Outra questão exposta é referente ao vínculo afetivo e familiar que as crianças já têm com ambas as mulheres e a busca da defesa dos interesses das crianças. Para fazer referência a isso, os ministros se baseiam no artigo 1º da Lei 12.010/09, o qual expõe a "garantia do direito à convivência familiar a todas e crianças e adolescentes", além do artigo 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), cujo entendimento é que "a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos".

É apresentado pelo colegiado um argumento que combate a suposição de muitas pessoas na sociedade, as quais discordam desse tipo de adoção alegando que não é saudável para o desenvolvimento das crianças. O relatório do STJ cita que há vários estudos especializados sobre o tema, embasados cientificamente, que não indicam nenhum problema em filhos serem adotadas por casais homoafetivos, sendo mais importante o vínculo e o afeto que compõem o meio familiar ao qual essas crianças pertencem e que as ligam a seus pais adotivos. Essas pesquisas são citadas pelo ministro relator, trazendo como exemplos de institutos que as desenvolvem a Universidade de Virgínia, a Universidade de Valência e a Academia Americana de Pediatria. Ele expõe, no relatório, que esses estudos científicos indicam:

- "ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar, quanto na circunstância de amar e servir";

- "nem sempre, na definição dos papéis maternos e paternos, há coincidência do sexo biológico com o sexo social";

- "o papel de pai nem sempre é exercido por um indivíduo do sexo masculino";

- "os comportamentos de crianças criadas em lares homossexuais não variam fundamentalmente daqueles da população em geral";

- "as crianças que crescem em uma família de lésbicas não apresentam necessariamente problemas ligados a isso na idade adulta";

- "não há dados que permitam afirmar que as lésbicas e os gays não são pais adequados ou mesmo que o desenvolvimento psicossocial dos filhos de gays e lésbicas seja comprometido sob qualquer aspecto em relação aos filhos de pais heterossexuais";

- "educar e criar os filhos de forma saudável o realizam semelhantemente os pais homossexuais e os heterossexuais";

- "a criança que cresce com 1 ou 2 pais gays ou lésbicas se desenvolve tão bem sob os aspectos emocional, cognitivo, social e do funcionamento sexual quanto à criança cujos pais são heterossexuais".

Todos esses pontos acima citados revelam a importância do vínculo afetivo entre a recorrida e os menores. Esse fator emocional deve ser tratado como aspecto preponderante a ser sopesado numa situação dessas. Devendo se considerar ainda que:

A adoção, antes de mais nada, representa um ato de amor, desprendimento. Quando efetivada com o objetivo de atender aos interesses do menor, é um gesto de humanidade. Hipótese em que ainda se foi além, pretendendo-se a adoção de dois menores, irmãos biológicos, quando, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, que criou, em 29 de abril de 2008, o Cadastro Nacional de Adoção, 86% das pessoas que desejavam adotar limitavam sua intenção a apenas uma criança. (BRASIL. Superior Tribunal Federal, Relatório do Recurso Especial Nº 889.852 - RS (2006/0209137-4), fl. 2)
Além disso, há um relatório da assistente social favorável ao pedido da requerente, alegando estabilidade da família. Deve-se considerar também que, com o indeferimento da adoção, os interesses dos menores serão prejudicados, pois em caso de separação ou falecimento de sua companheira, o convívio entre a requerente e as crianças será rompido. Com o consentimento desse pedido, asseguram-se os direitos relativos a alimentos e sucessão, viabilizando-se, ainda, a inclusão dos adotados em convênios de saúde da requerente e no ensino básico e superior, por ela ter melhores condições financeiras e sociais que sua parceira.

Juntamente com o entendimento dos ministros, o Ministério Público Federal também dá um parecer correspondente ao do STJ, pois vê que a matéria fática é indiscutível e que não há prejuízo no âmbito psicológico-emocional das crianças, cuja adoção se cogita, pois está se garantindo maior segurança, maior amparo e maior afeto a elas, devendo-se aceitar a adoção pretendida.

Com isso, o colegiado do STJ que analisou o pedido do Ministério Público do Rio Grande do Sul de indeferimento da adoção concedida pelo Tribunal de Justiça do mesmo estado, entendeu essa solicitação como improcedente, pois:

Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. (BRASIL. Superior Tribunal Federal, Recurso Especial Nº 889.852 - RS (2006/0209137-4), fl. 69)
Essa decisão favorável à adoção das crianças pelo casal homoafetivo em discussão pode ser considerada, juntamente com outros casos semelhantes – que se encontram em tribunais de diversos estados brasileiros -, como um incentivo para que casais homoafetivos não desistam de adotarem filhos, de terem uma família. Os preconceitos quanto a esse tipo de adoção devem ser superados, visto que estudos não mostram prejuízos aos adotados, devendo se levar em consideração também, que milhares de crianças estão abandonadas em abrigos e que elas poderiam ter um ambiente familiar cercado de amor, carinho e boa educação, com casais homoafetivos que desejam adotar um filho, mas que são impedidos pela burocracia e dogmatização do direito.


3 – ANALISANDO A DECISÃO COM BASE EM LYRA FILHO E WARAT


Alguns pontos desta decisão merecem ser analisados segundo algumas teorias, como a Teoria Dialética do Direito, de Roberto Lyra Filho, e o Pluralismo Jurídico, discutido por Luís Alberto Warat.

Fazendo-se uma análise do argumento do Ministério Público do Rio Grande do Sul, nota-se uma visão dogmática do Direito, caracterizada pela utilização da lei como um instrumento rígido, pois tenta argumentar que a união homoafetiva é apenas uma sociedade, visto que, na época, não era reconhecido ainda judicialmente essa união pelo Judiciário brasileiro. Assim, o MP/RS está se embasando apenas na lei escrita, de forma a não aceitar que, na realidade, o relacionamento entre duas pessoas do mesmo sexo vai além do parâmetro de uma mera sociedade, considerando que elas, como os casais heterossexuais, também podem ter pretensões de construir uma família com filhos. Essa visão dogmática do direito é criticada por Roberto Lyra Filho, que entende isso como um fenômeno paralisador, um obstáculo ao pensamento progressista, de modo que devemos repensar o Direito, como práxis e como processo histórico-social e sócio-político, e não apenas como simples e infradialetizado produto, que se contém na camisa da força de certo projeto de normação imposta pelo Estado e de natureza classista, devendo-se desenvolver uma teoria dialética do direito, que é um método capaz de construir um conhecimento objetivo, porque trata dos fenômenos do mundo, e histórico, pois vê a história como processo, além de transcender a mera descrição positivista da facticidade dos eventos e viabilizar uma ciência histórica e engajada com o presente.

Quanto à decisão do STJ sobre o caso, pode-se notar que os ministros são contra essa desvinculação do Direito da realidade, nos argumentos em que defendem que "Em um mundo pós-moderno de velocidade instantânea da informação, sem fronteiras ou barreiras, sobretudo as culturais e as relativas aos costumes, onde a sociedade transforma-se velozmente, a interpretação da lei deve levar em conta, sempre que possível, os postulados maiores do direito universal.", juntamente com o outro que diz que "O Judiciário não pode fechar os olhos para a realidade fenomênica. Vale dizer, no plano da "realidade", são ambas, a requerente e sua companheira, responsáveis pela criação e educação dos dois infantes, de modo que a elas, solidariamente, compete à responsabilidade." Isso encontra semelhança na defesa teórica tanto de Warat, ao defender que o mundo é plural e que a realidade não deve ser desconsiderada na hora da decisão, criticando-se juízes monolíticos, como de Lyra Filho, que vê o fato social como início e fim do direito, e pretende abrir a consciência jurídica para uma visão mais ampla, além do texto escrito, que considere o aspecto social.

Outro assunto ressaltado pelo STJ é quanto ao vínculo afetivo e familiar existente entre as crianças e a requerente, bem como com sua companheira. Essa consideração feita pelo colegiado nos aproxima novamente de Warat, que entende que o racionalismo não deve se separar da sensibilidade no objetivo de defender a dignidade humana.

Com isso, nota-se que há uma aproximação das teorias de Warat e de Lyra Filho com a decisão do STJ, o que foi demonstrado nos argumentos acima analisados, sempre com a busca de adequar a lei abstrata ao caso concreto, de modo a considerar a realidade, visto que o mundo é plural e que se modifica constantemente, não devendo o Direito se comportar como um instrumento rígido. A utilização do contexto real na hora da decisão pode ser feita pela mudança de pensamento dos juízes na hora de decidirem, de forma a abrirem suas mentes ao analisarem casos, notando o que se passa na sociedade e sua relevância para o julgamento. Como Warat bem diz:

A prática dos juristas unicamente será alterada na medida em que mudem as crenças matrizes que organizam a ordem simbólica desta prática. A pedagogia emancipatória do Direito passa pela reformulação de seu imaginário instituído. (WARAT, 1988, P. 31).

4 - A NOVA FAMÍLIA


A família é considerada a base de qualquer sociedade. Antes da Constituição Federal de 1988, até bem pouco tempo, era considerada família apenas aquela oriunda do casamento. Com a promulgação da referida Carta Magna, passam a serem admitidas outras formas de constituição familiar, conforme previsão contida em seu art. 226, caso da união estável entre homem e mulher, da família constituída por ambos os genitores ou, ainda, a de caráter monoparental, formada por um dos pais e seus descendentes. Essa previsão possibilitou a todos os cidadãos brasileiros o exercício do direito de constituir família, seja ela de forma natural, artificial, ou por adoção. Se a base da constituição da família deixou de ser a procriação e a geração de filhos, para se concentrar na troca de afeto e de amor, é natural que mudanças ocorressem na composição dessas famílias. Se, biologicamente, é impossível duas pessoas do mesmo sexo gerarem filhos, agora, com o novo paradigma para a formação da família – o amor, em vez da prole – os casais não necessariamente precisam ser formados por pessoas de sexos diferentes.

Segundo o advogado Luiz Edson Fachin, o direito à orientação sexual integra a identidade da pessoa e é, por isso mesmo, direito personalíssimo elevado ao estatuto de direito fundamental. Não se pode, por evidência, negar um lar a uma criança que dele necessita em virtude da orientação sexual dos adotantes. O jurista também afirma que:

A família atual é eudemonista, ou seja, aquela que se justifica exclusivamente pela busca da felicidade, da realização pessoal dos seus indivíduos. E essa realização pessoal pode dar-se dentro da heterossexualidade ou da homossexualidade. É uma questão de opção, ou de determinismo, controvérsia esta acerca da qual a ciência ainda não chegou a uma conclusão definitiva, mas, de qualquer forma, é uma decisão, e como tal, deve ser respeitada. (FACHIN, 2003, p. 56)


Partindo então do pressuposto de que o tratamento a ser dado às uniões entre pessoas do mesmo sexo, que convivem de modo durável, sendo essa convivência pública, contínua e com o objetivo de constituir família, deve ser o mesmo que é atribuído em nosso ordenamento às uniões estáveis, resta concluir que é possível reconhecer, em tese, a essas pessoas o direito de adotar em conjunto.


A adoção constitui um parentesco eletivo, pois decorre exclusivamente de um ato de vontade. Trata-se de modalidade de filiação construída no amor, na feliz expressão de Luiz Edson Fachin, que gera vínculo de parentesco por opção. A adoção consagra a paternidade socioafetiva, baseando-se, não em fator biológico, mas em fator sociológico. A verdadeira paternidade funda-se no desejo de amar e ser amado.


O advogado Paulo Lôbo, especialista em direito de família e ex-conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), explica que não há necessidade de comprovação da união estável por meio de contrato, tendo em vista a Constituição Brasileira. No documento de 1988, a união estável difere do casamento por dispensar um ato solene para constituição de uma família. A Constituição anterior considerava ilegal este tipo de união.


A falta de uma tutela jurídica pelo parlamento brasileiro fez com que muitos advogados sugerissem aos clientes na união estável ou homoafetiva que fizessem um contrato entre eles, mas não é necessário. A lei faculta que isso seja feito exclusivamente para regime de bens, os parceiros podem pedir comunhão ou separação de bens. (LÔBO, 2010, p.67)


Segundo o jurista Paulo Lôbo, "a família sofreu profundas mudanças de função, natureza, composição e, consequentemente, de concepção, sobretudo após o advento do Estado social, ao longo do século XX". Falta o nosso ordenamento jurídico acompanhar essas mudanças. Hoje, segundo Lôbo,

o modelo igualitário da família constitucionalizada se contrapõe ao modelo autoritário do Código Civil anterior. O consenso, a solidariedade, o respeito à dignidade das pessoas que a integram são os fundamentos dessa imensa mudança paradigmática que inspiraram o marco regulatório estampado nos arts. 226 a 230 da Constituição de 1988. (LÔBO, 2010, p.91)

O fundamental é que a adoção é uma medida de proteção aos direitos da criança e do adolescente, e não um mecanismo de satisfação de interesses dos adultos. Trata-se, sempre, de encontrar uma família adequada a uma determinada criança, e não de buscar uma criança para aqueles que querem adotar.

O aumento do número de adoções, ao conceder a permissão para os casais homoafetivos, resolveria grande parte do problema das crianças órfãs de nosso país, visto que há um enorme contingente de menores abandonados, que poderiam ter uma vida com conforto, educação e carinho. O preconceito, entretanto, faz com que a sociedade pereça e muitas crianças sejam privadas de ter um lar, afeto, carinho, atenção. É preciso romper a barreira da discriminação e permitir que o desejo da adoção, seja por casais homossexuais ou não, torne-se um instrumento efetivo na resolução dos problemas com as crianças que não têm lar, nem identidade. Ora, se uma criança sofre maus tratos no seio de sua família biológica, abusos de toda espécie ou se é abandonada à própria sorte, vivendo nas ruas, sendo usada para o tráfico de drogas, como ocorre em nossos centros urbanos, evidentemente que sua adoção, quer seja por parte de casal homossexual, ou heterossexual ou mesmo por pessoa solteira, desde que revele a formação de um lar, onde haja respeito, lealdade e assistência mútuos, só apresenta vantagens.


A Deputada Federal Marta Suplicy é autora do projeto de lei n.º 1.151/95, que "Disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo e dá outras providências", pretendendo assegurar aos homossexuais o reconhecimento da união civil, visando principalmente a proteção dos direitos à propriedade. Porém, não pretende, nem de longe, equiparar esta união com o casamento, nem tampouco criar uma nova espécie de família, pois veda a adoção de crianças. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente, que regula a adoção de menores, não faz restrição alguma, seja quanto à sexualidade dos candidatos, seja quanto a necessidade de uma família constituída pelo casamento como requisitos para a adoção.

A solução dada pela Desembargadora do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias, é notável. Não há qualquer impedimento no Estatuto da Criança e do Adolescente, pois a capacidade para a adoção nada tem a ver com a sexualidade do adotante, sendo expresso o art. 42, ao dizer: "Podem adotar os maiores de 21 anos, independentemente do estado civil". Deve prevalecer o princípio do art. 43: "A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotado e fundar-se em motivo legítimo".

Vê-se que ao menos um pouco do preconceito já foi superado por alguns magistrados. Porém, ainda há muito que se fazer, não apenas pelos juízes ou desembargadores, mas também pelos legisladores, doutrinadores e por cada cidadão do país. Cabe principalmente ao estudioso e profissional de Direito a tarefa de tomar a iniciativa em tratar os homossexuais da mesma forma que os outros, encarando com naturalidade as nuances de uma opção não tradicional e estigmatizada.


5 – CONCLUSÃO


Diante da valorização da dignidade da pessoa humana como elemento fundamental do Estado Democrático de Direito não poderá haver qualquer discriminação baseada em características pessoais individuais, repelindo-se, dessa forma, qualquer restrição à liberdade sexual do indivíduo, não se podendo admitir, portanto, desrespeito ou prejuízo em função da sua orientação sexual.

A sociedade passa por mudanças e cabe ao Direito acompanha-las, sendo constantemente atualizado. Enquanto isso não ocorre e ainda não existam leis protegendo a união homoafetiva, deve o juiz basear-se na analogia, nos costumes e princípios gerais do Direito, sempre resolvendo a questão dentro dos preceitos constitucionais e buscando, no caso da adoção, o melhor interesse da criança e do adolescente, pois adotar vai muito além da orientação sexual de quem deseja fazê-la.


6 – BIBLIOGRAFIA


FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do Novo Código Civil Brasileiro. Rio de Janeiro, Renovar, 2003.

LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 3 ed. – São Paulo, Saraiva, 2010.

LYRA FILHO, Roberto. Para um direito sem dogmas. Porto Alegre, Fabris, 1980.

WARAT, Luís Alberto. Manifesto do Surrealismo Jurídico. São Paulo, Acadêmica, 1988.

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