quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Análise crítica ao reconhecimento dos efeitos jurídicos das relações extraconjugais no âmbito do Poder Judiciário



Ademais, o regime matrimonial de bens teve tratamento primordial pelo legislador, pois nada menos que 59 (cinquenta e nove) artigos do Código tratavam da matéria. Os impedimentos matrimoniais estatuídos no art. 183 do Diploma Civil de 1916 também tinham como fundamentos a defesa do patrimônio, e não das pessoas, como nos casos dos incisos XIII, XV e XVI:

Art. 183. Não podem casar:
(...)
XIII – o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros;
(...)
XV – o tutor ou curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas, salvo permissão paterna ou materna manifestada em escrito autêntico ou em testamento;
XVI – o juiz, ou escrivão e seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com órfão ou viúva, da circunscrição territorial onde um ou outro tiver exercício, salvo licença especial da autoridade judiciária superior.
A escolha do casamento como meio único de constituição da família deu-se por dois motivos essenciais. O primeiro foi o fato de, em decorrência da sociedade brasileira sempre ter tido a propensão de cultivar as tradições cristãs, tal instituto já se encontrar impregnado na cultura nacional. O segundo motivo reside na solenidade e na publicidade inerentes ao rito matrimonial: essas características, por certo, gerariam uma segurança jurídica, a qual era favorável à manutenção do compromisso assumido pelos nubentes.
Face ao aludido modelo uno de família, as relações de fato surgidas fora do casamento não recebiam qualquer reconhecimento jurídico. Não havia família em relações concubinárias, mesmo no denominado concubinato puro (entre pessoas sem impedimentos matrimoniais). Além disso, filhos havidos fora do casamento eram considerados ilegítimos, não podendo ser reconhecidos pelos pais, mesmo que estes quisessem.
Negar reconhecimento a esses filhos tinha finalidade punitiva, visando a impedir a procriação fora dos sagrados laços do matrimônio
Dentro da relação matrimonial da época notou-se uma certa ausência de preocupação com a felicidade dos membros da família, visto que era evidente o desequilíbrio entre os cônjuges, ante a prevalência da figura do marido. Ao varão praticamente só eram conferidos pelo Código privilégios. O rol de seus direitos era extenso, incluindo, por exemplo, a chefia exclusiva da sociedade conjugal, a incumbência de representar a família, de administrar os bens comuns, de autorizar a mulher a realizar determinados atos.
Na realidade, pouco importava se os membros da família estavam felizes ou não com aquela situação. A dignidade deles era um dado secundário. O que, de fato, se tornava relevante era a manutenção da paz doméstica, o equilíbrio, a segurança, a coesão formal da família, mesmo em detrimento da realização pessoal de cada um dos seus integrantes, principalmente a mulher.
A família constituída pelo casamento era concebida como um instituto em prol da própria família, um fim em si mesma, porque o legislador entendia que aquele modelo fechado era o único correto. Como consequência de tudo isso, aquelas pessoas que preferiram viver à margem do Direito, pois não se casaram, receberam designações extremamente discriminatórias, enquanto membros de uma família ilegítima, constituída à margem da lei.
Os filhos provenientes das relações extraconjugais sofriam do mesmo fardo de serem tratados como ilegítimos e, por isso, não recebiam os direitos privativos dos chamados filhos legítimos, frutos do casamento. Nasciam já marcados pelo selo da exclusão social em virtude do status de espúrios, bastardos.
Demais disso, a relação entre pais e filhos era pouco afetiva, sendo o processo educacional rígido, autoritário e unilateral. Mesmo os filhos legítimos não tinham voz nem vez, restando o dever de obedecer sempre, pois o patriarca sabia o que era melhor para sua prole. Não havia espaço para o diálogo, a troca de idéias e de conhecimentos. O pai do início do século XX tinha como seu principal papel nutrir financeiramente seus filhos, e isso bastaria para que fosse proporcionada a felicidade de todos.
Ao considerar como ideal o modelo de família descrito acima, o legislador vedava por absoluto o término definitivo do vínculo matrimonial, não sendo permitido o divórcio, admitindo-se, tão somente, o encerramento da sociedade conjugal, através da separação judicial (desquite), sendo que o culpado por essa separação era duramente punido com a perda automática da guarda judicial dos filhos e dos direitos ao nome de casado e aos alimentos. Manter o casamento após o desquite, ainda que desfeito o vínculo afetivo, negava a realidade da vida, criando uma ficção no escopo de impedir a constituição de novas uniões.
O legislador era o grande ditador dessa situação de rigidez legal, que dizia como as pessoas deveriam proceder, impondo pautas de conduta afinadas com a moral vigente. E em razão dessa imposição é que muitas famílias foram mantidas, em prol do reconhecimento do Estado e da própria sociedade hipócrita e preconceituosa, quando no âmago de cada um dos seus membros reinava a insuportabilidade da vida em comum, algo relativamente normal nos relacionamentos humanos, mas terrivelmente evitado pelo legislador infraconstitucional. Some-se ainda a pregação da Igreja Católica de que não seria possível ao homem separar o que Deus uniu.
Ainda assim, novas configurações familiares foram surgindo, instituídas por laços de afeto, respeito e mútua assistência, aversas a formalidades criadas por convenções sociais, mas plenamente capazes de desenvolver a personalidade de seus membros. O casamento deixou de ser a figura central da família, abrindo espaço para o exercício da liberdade pelos indivíduos para escolher a forma de família que pretendem constituir, possuindo a prerrogativa de, se não mais houver amor, colocar fim ao relacionamento, permanecendo íntegros, contudo, os vínculos paterno-filiais. O silêncio da lei não foi suficiente para impedir a busca da felicidade pelo ser humano.
No momento atual, o modelo de família está fundado no poder familiar, que pertence ao casal, e nos valores da afetividade, da solidariedade, da convivência e dos laços criados e não em valores culturais e religiosos. Portanto, inaugurando uma nova fase que reflete mudanças na moral brasileira, a Constituição Federal, promulgada aos cinco dias do mês de outubro de 1988, ao contrário de suas antecessoras, que consideravam apenas o casamento como forma de família legítima, alçou a união estável e a família monoparental à categoria de entidades familiares protegidas pelo Estado, no escopo de preservar a unidade e a sobrevivência social e legitimar a existência dos dois novos agrupamentos:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 3º. Para efeito da proteção do Estado é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º. Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
O cenário do direito de família foi modificado para atender aos anseios sociais, alterando radicalmente o paradigma da família.
1.2.A Dignidade da Pessoa Humana e seu Papel na Reestruturação da Família à luz da Constituição Federal de 1988.
Apesar das variadas formas que assume e das transformações sofridas no decorrer dos tempos, a família permanece como condição para a humanização e a socialização das pessoas, constituindo-se em uma constante universal em todas as culturas, como forma de relação social da espécie humana, não só como estratégia de sobrevivência dos grupos, mas como condição para o desenvolvimento e a realização da pessoa.
A família é considerada o berço da sociedade e a formadora dos indivíduos, na qualidade de primeiro sistema social no qual o ser humano é inserido desde o seu nascimento. Nela são atendidas as mais diversas necessidades humanas e sociais, quer para a identidade simbólica do indivíduo, que lhe proporciona experiência no nível psicológico, quer ao oferecer experiências humanas básicas e referenciais que perduram no tempo: paternidade, maternidade e fraternidade.
Cabe à entidade familiar possibilitar o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana e, como consequência, a evolução da sociedade, pois, caso contrário, não é merecedora de proteção. A Constituição Federal de 1988 considera ter sido o Estado criado em função de seu povo e para servir a todos os cidadãos de modo a preservar, manter e garantir sua dignidade. Apenas à guisa de comentário, ressalta-se que o legislador constituinte inseriu o capítulo dos direitos fundamentais antes do capítulo referente à organização do Estado, reforçando a tese de que este foi criado como elemento a garantir a dignidade da população.
Assim sendo, toda e qualquer ação do ente estatal deve ser e estar direcionada à busca da dignidade da pessoa humana, sob pena de suas ações serem consideradas inconstitucionais. Pois o Estado deve, em sua atuação, partir do pressuposto de que cada pessoa é um fim em si, e emprenhar-se na busca e concretização de sua felicidade.
É nesse contexto constitucional que a entidade familiar passa a ser encarada como uma verdadeira comunidade de afeto e entreajuda, e não mais como uma fonte de produção de riqueza como outrora. É o âmbito familiar o local mais propício para o indivíduo obter a plena realização da sua dignidade enquanto ser humano, porque o elo entre os integrantes da família deixa de ter conotação patrimonial para envolver, sobretudo, o afeto, o carinho, amor e ajuda mútua.
Nesse sentido, as relações familiares se tornam muito mais verdadeiras, porque são construídas e não impostas por quem integra o instituto. O ser, finalmente, supera o ter, fazendo o afeto tornar-se o elemento irradiador da convivência familiar.
O conceito de família desvincula-se de um papel adstrito a consaguinidade e a proteção pelo casamento civil ou religioso. Entretanto, não para fragilizar ou sepultar o núcleo essencial à vida em sociedade, mas na perspectiva de aproximar o direito da realidade e promover o fortalecimento da família através da tutela de todos os seus arranjos vivenciais. Na união estável e na família monoparental não há casamento, mas há família, e o grande fator de união entre as personagens formadoras dessas entidades está no afeto, desdobrando-se, dessa forma, nos fatores de solidariedade, companheirismo e respeito.
A dignidade é tudo aquilo que não tem preço, não pode ser objeto de troca, é inestimável e indisponível. Nas palavras de Kant (1986) é possível delinear uma conceituação adequada de dignidade:
No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.
A Constituição, segundo José Afonso da Silva (1993, p. 109):
Abriu as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais que ela inscreve e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana.
Com efeito, as entidades pós-modernas surgem priorizando os laços de afetividade que unem seus membros, não sendo mais a família sinônimo de casamento. A tutela jurídica não é mais concedida à instituição em si mesma, como portadora de um interesse superior ou supra-individual, mas à família como um grupo social, como o ambiente no qual seus membros possam, individualmente, melhor se desenvolverem. E essa visão sociológica das relações familiares é de importância cabal, pois reflete a evolução contínua por que passa o instituto familiar na atualidade.
O relacionamento entre os familiares também ganhou nova roupagem, passando a ser muito mais aberto, democrático e plural, permitindo que cada indivíduo venha a obter, de fato, a realização da sua felicidade particular. Isso porque, se a Constituição consagrou a dignidade da pessoa humana como super princípio, assim o fez por ter encontrado na família contemporânea um forte meio de sua propagação, pois é no âmbito familiar que o indivíduo cresce e adquire suas habilidades para a convivência social.
Moreira Alves apud Gustavo Tepedino (2007, p. 140), proclama:
A maior preocupação da atualidade é com a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas de direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família, regulando as relações mais íntimas e intensas do indíviduo no social.
Desse modo, entende-se que a família advinda da Constituição Federal de 1988 tem o papel único e específico de fazer valer a dignidade de seus integrantes como forma de garantir a felicidade pessoal de cada um deles. A construção de sonhos, a realização do amor, a partilha do sofrimento, enfim, os sentimentos humanos devem ser compartilhados nesse verdadeiro lar, um lugar de afetividade, afeto e respeito.
1.3.A Afetividade como Pressuposto de Formação da Família Contemporânea.
O princípio da afetividade não está previsto de forma expressa no ordenamento jurídico, mas a Constituição Federal, ao estabelecer a pluralidade das entidades familiares, reconhece a afetividade como base da família.
Não importa a posição do indivíduo na família, ou qual a espécie de grupamento familiar a que ele pertence, importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, valores e se sentir, por isso, a caminho da realização do seu projeto de felicidade (DIAS, 2006).
Os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea sobrepujam e rompem, definitivamente, com a concepção tradicional de família. A arquitetura da sociedade pós-moderna traz um modelo familiar descentralizado, democrático, igualitário e desmatrimonializado. O escopo precípuo da família parece ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, regida pelo afeto, como mola propulsora.
Sendo a constituição da família um fato natural, não podendo submeter-se a idéias estáticas, presas a valores de um passado distante, constata-se que a formação dos agrupamentos humanos atuais se dá, em primeiro lugar, pelo estabelecimento de laços de afeto. Decorre uma mutabilidade inexorável na feição da família, apresentando-se sob tantas e diversas formas quantas forem as possibilidades de se relacionar (ou talvez, de expressar o amor). A família, enfim, não traz consigo a pretensão da inalterabilidade conceitual. Ao revés, seus elementos fundantes variam de acordo com os valores e ideais predominantes em cada momento histórico.
Costa (2010) trata com clareza sobre o processo de evolução e transformação do núcleo familiar:
A família foi, é, e continuará sendo o núcleo básico e essencial da formação e estruturação dos sujeitos, e, consequentemente, do Estado. Desta forma, é uma construção que está estruturada no afeto, no amor, na compreensão, nas atitudes solidárias e no reconhecimento.
Essa idéia de família nada mais é do que o reflexo do fim das famílias patriarcais de 1916, daquela família fundada pelos laços de sangue e comandada pelo pai poder. Ainda, são reflexos das transformações da sociedade, dos grandes avanços e das conquistas de longos anos, que hoje são comemoradas por todos os operadores do Direito.
Assim, família se constitui por diversos fatores e é capaz de ter múltiplos envolvidos, pois hoje existe uma estrutura multifacetada, quando tratamos de famílias uniparentais, homoafetivas, pluriparentais, etc., demonstrando o caráter eudemonista, presente na nossa atualidade e justificada exclusivamente na busca da felicidade e na realização pessoal de seus indivíduos.
A sociedade brasileira vive hoje o fenômeno das famílias recompostas e reconstituídas, formadas, justamente, por pessoas que estão ligadas pelo amor.
Esses fatores somados, que constituem a família, é que garantem o desenvolvimento da esfera familiar. Assim, a presença do afeto, do carinho, da compreensão, da atenção, da disponibilidade, do cuidado, do alimento, é que são capazes de dar ensejo a presença de uma estrutura familiar propriamente dita, independentemente de quem são, e de quantos são, os indivíduos envolvidos.
A partir do momento em que as pessoas passaram a se casar por amor, a família foi deixando de ser, essencialmente, um núcleo econômico e reprodutivo. Assim se fez a "desconstrução" da família patriarcal, tradicional e hierarquizada. E foi, então, que o afeto tornou-se um valor jurídico.
Nesse sentido, o amor e a autonomia privada tem sido fonte de ampliação dos horizontes, pois nunca se demonstrou tanta preocupação com o outro e o seu bem-estar como nas sociedades atuais.
A Família, afinal, é lugar privilegiado da realização da pessoa, pois é aí que se inicia e se desenvolve todo o processo de formação da personalidade do sujeito. A Família deixou, portanto, de ser um núcleo econômico e de reprodução para ser o espaço do amor e do afeto.
A busca pela institucionalização da família no modelo ultrapassado de matrimônio, baseado na união religiosa e civil entre homem e mulher, já não é regra na sociedade do tempo presente. Afinal, o mundo está experimentando o novo padrão das sociedades familiares construídas não somente entre sexos opostos, mas também por pares do mesmo sexo nas uniões homoafetivas. Mais importante, pois, revela-se o afeto dos entes que se unem para satisfazer o desejo da aproximação.
Um dos fulcros constitucionais que albergam o princípio da afetividade encontra-se no art. 226, parágrafo 8, da Constituição Federal, no momento em que assimila o marco ora tratado da nova família, com contornos diferenciados, pois prioriza a necessidade da realização da personalidade dos seus membros, ou seja, a família-função, em que subsiste a afetividade que, por sua vez, justifica a permanência da entidade familiar (COSTA, 2010).
A eliminação das fronteiras arquitetadas pelo sistema sócio jurídico clássico dá lugar à família contemporânea, suscetível às influências da nova sociedade, trazendo o afeto como eixo fundamental, deixando de ser compreendida como núcleo econômico e reprodutivo. O elemento distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo.
A entidade familiar deve ser entendida, hoje, como grupo social fundado, essencialmente, por laços de afetividade, pois à outra conclusão não se pode chegar à luz do texto constitucional.





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